Introdução
Sou o Cine-Olho. Sou um olho mecânico. Eu, uma máquina, mostro a vocês o mundo como apenas eu o consegui ver. Liberto-me a partir de hoje e para sempre da imobilidade humana, estou em constante movimento, eu me aproximo e me afasto de objetos, rastejo sob eles, eu os escalo (…) Meu caminho vai rumo à criação de uma nova percepção do mundo. E assim eu decifro de uma nova forma um mundo que lhes é desconhecido…
Este é um trecho do texto “Kinocs. Revolução”, escrito em 1922 por Dziga Vertov. O autor foi um influente teórico e diretor de cinema de vanguarda no período inicial da União Soviética, fazendo filmes como “Cine-Olho”, “A Sexta Parte do Mundo”, “Um Homem com uma Câmera”, “Entusiasmo”, além de muitos outros.
Este trecho aborda um de seus principais conceitos, o Cine-Olho, que vem dessa libertação da câmera de como uma mera cópia do olhar humano. Vertov entrou em contato com o cinema ainda em sua gênese, quando não havia um bem-fazer cinematográfico ou uma consolidação do cinema como linguagem. Por conta disso, muito dos primeiros filmes eram meramente um teatro filmado ou não sabiam se utilizar desse dispositivo que era a câmera e a montagem. Vertov viu potencial nisso e queria se desvincular desses filmes, colocando a câmera e a montagem como o diferencial da linguagem cinematográfica.
A câmera pode ver o mundo de uma forma que um ser humano não conseguiria: ela pode ficar abaixo de um trem, voar, pode ver o tempo acelerado ou curto, pode focar em pequenos detalhes ou mostrar o movimento de uma grande cidade. A montagem, aliada com a câmera, pode trazer efeitos que outras artes não conseguiriam. A câmera pode mostrar um homem olhando para frente e depois um zoom na fresta de uma porta. A montagem, colocando os dois planos em sequência, deixa claro que o homem está olhando para a fresta da porta.
O cinema enquanto linguagem demorou para se estabelecer e Vertov foi um dos diretores que estudou e aplicou em seus filmes diversas dessas teorias que enfim consolidariam o cinema como a linguagem do século XX.
Um Homem com uma Câmera

Depois dessa introdução, podemos falar do assunto do post propriamente dito: o filme Um Homem com uma Câmera. Este filme foi mal recebido em sua época, mas futuramente foi consolidado como um dos melhores filmes de todos os tempos, sendo até eleito como o melhor documentário de todos os tempos pela Sight and Sound em 2014.
Eu já sabia alguma dessas informações, porém pensava “deve ser um filme muito difícil, vou assistir quando estiver mais ‘maduro’”. Até que, em mais uma noite de insônia, resolvi dar uma chance e virou meu filme favorito. Não vou dizer que virou meu filme favorito logo de cara, mas fiquei algumas semanas pensando nele sem parar, até que enfim virou meu filme favorito.
O filme é um filme mudo sem intertítulos, que são uma sequência de texto que descreve ou complementa uma imagem em filmes mudos, frequentemente usados para diálogos. Os únicos intertítulos são no início do filme, antes dele começar, em que Vertov explica que o filme é um experimento visual, que pretende construir uma linguagem cinematográfica internacional, sem a ajuda de intertítulos, do teatro ou da literatura. O filme é um manifesto visual que visa defender que o cinema é uma linguagem em si própria, que não precisa de outras para se sustentar.
O documentário aborda a vida cotidiana na União Soviética no tempo da NEP, a Nova Política Econômica do Lenin, mas também é um documentário sobre fazer um documentário, sendo um filme metalinguístico. Durante o filme inteiro, acompanhamos Mikhail Kaufman, irmão de Vertov, que é o operador de câmera, enquanto ele filma as cidades de Moscou, Odessa e Kiev.
Quando assisti pela primeira vez, uma das coisas que mais me chamou à atenção foi descobrir como era a vida das pessoas comuns na URSS. Na escola, estudei bastante sobre as guerras, Lenin, Trotsky, Stalin, política externa, mas muito pouco estudei sobre o cotidiano das pessoas. Essa era uma das minhas maiores dúvidas e esse filme foi uma resposta a isso.
Relembrando o conceito de Cine-Olho no início, o Vertov o utiliza para dar uma visão do cotidiano soviético que não seria possível apenas com o olho humano. Vemos a cidade acordar, as pessoas caminharem aos seus trabalhos, planos gerais para demonstrar a grande massa de população caminhando pela cidade e a fazendo viva. Vemos crianças brincando, dramas familiares, rotina de trabalhadores, adultos fazendo esporte, tudo isso num espaço de uma hora, algo que apenas a câmera, esse objeto que viaja no tempo e nas três dimensões do espaço, poderia fazer.

O filme trabalha muito essa ideia de uma cidade coesa. As pessoas não trabalham apenas pelo seu salário, mas tudo tem um propósito, o trabalho não é alienado. Vertov utiliza do poder da linguagem do cinema para mostrar que todas aquelas pessoas são importantes. O indíviduo não é o protagonista da história, mas sim o coletivo. O filme, embora tenha um certo ode ao Lenin, não foca na “história dos homens grandes” e sim na história das pessoas comuns, ele eterniza a história de milhares de soviéticos que seriam esquecidos para a história. O cinema, então, vira uma arma na mão da classe trabalhadora, para contar a sua própria história.
Ainda sobre isso, há uma ideia de o trabalho artístico não como algo idealizado, mas sim como o trabalho de um operário qualquer. Isso também traz à tona uma outra ideia: todos os trabalhadores são artistas de seu ofício, assim como todos os artistas também são trabalhadores. Vertov trabalha essa ideia ao expor seu irmão com roupas comuns, segurando sua ferramenta e instrumento de trabalho, a câmera, frente a cidade com milhares de pessoas iguais a ele.

Vertov, em um de seus textos, escreveu a seguinte frase, que eu acho que resume bem o que o filme quer dizer:
Todas as pessoas são, em certo grau, poetas, artistas ou músicos. Senão, não há poetas, artistas ou músicos. Um milionésimo da criatividade do trabalho diário de um homem contém um elemento de arte, se há de se utilizar desse termo.
Essa semelhança entre o trabalho “artístico” e “não-artístico” é muitas vezes exposta através da montagem. Muitas vezes, o filme utiliza de cortes rápidos entre planos mostrando pianistas, tipógrafos, trabalhadores de tecelagem e a própria editora do filme, Elizaveta Svilova, a esposa de Vertov. Esses cortes criam uma metáfora visual, mostrando que todos esses trabalhos são igualmente artísticos e válidos para a sociedade.
Gosto demais do quanto o filme mostra a importância do trabalhador. Embora vemos essa glorificação da máquina, do movimento mecânico, o Vertov sempre acompanha os planos de máquinas com os planos de seus respectivos trabalhadores. Frequentemente, ele usa da técnica de sobreposição, contrastando o movimento mecânico da máquina com a pessoa que, por trás, está operando ela. Consequentemente, o filme também mostra muito a importância do artista. A cena final do filme é um plano contendo a câmera, este olho mecânico que permite uma nova visão de mundo, refletindo o olho humano do trabalhador que a opera. É uma cena absurdamente linda, nos lembrando que por trás de todo o trabalho, incluindo a própria produção do filme, há um ser humano por trás.

Um outro aspecto que gosto muito deste filme é como ele sempre mantém um horizonte de esperança, provavelmente porque a revolução russa ainda era um fenômeno recente e ainda havia a esperança na construção de um socialismo. Muitas obras artísticas recentes tratam da mecanização do trabalho e a própria urbanização como fenômenos negativos, enquanto aqui o diretor os exalta, como uma nova forma de organização do trabalho.
A montagem do filme também é muito boa, como já citei aqui algumas vezes. Ela tenta acompanhar o próprio ritmo da cidade: no início, quando os trabalhadores ainda estão acordando, os planos são mais longos, havendo menos cortes. Quando o trabalho começa para valer, a câmera se desloca para o ambiente de fábrica, a montagem fica rápida e frenética, alternando entre planos de vários trabalhadores em seus diferentes ofícios. Quando as máquinas são desligadas, os planos novamente ficam mais longos, acompanhando os trabalhadores em seus momentos de lazer. No final do filme, a câmera se volta para o movimento da cidade, focando nos bondes, nas pessoas nas ruas, e os planos ficam mais curtos e acelerados novamente.
Através da própria montagem, nós conseguimos ficar imersos ao ritmo da cidade grande e entender um pouco o que os trabalhadores daquelas cidades passam. Embora o filme tenha somente uma hora, conseguimos entender todo o seu cotidiano e as sensações que eles sentem através do cinema. Como diria Vertov:
O fundamental e o mais importante é:
A CINE-SENSAÇÃO DO MUNDO.
Conclusão
Este texto não faz jus à grandiosidade que é o filme Um Homem com uma Câmera. O filme é um experimento visual de vanguarda que eu diria que permanece inovador até os dias de hoje e, como uma arte cinematográfica, é impossível de ser descrito através de palavras. É uma sensação única ver este filme, portanto, recomendo que tentem assisti-lo.
O documentário está disponível gratuitamente no YouTube. Não possuímos a trilha original do filme, por isso há várias versões do filme com diversas trilhas sonoras. A minha favorita é a versão da Cinematic Orchestra, que tem uma pegada de jazz que eu acho que combina muito bem com o filme, além de que ela foi feita especificamente para o filme.
Queria ter um pouco mais para comentar, pois como eu disse, é o meu filme favorito. Mas, por enquanto estes são os comentários que tenho a fazer, a minha recomendação em si é experienciar por conta própria este filme.
Última modificação em 2025-11-23